A ‘libertação’ de traficantes condenados pela coordenação das maiores remessas de cocaína de sempre para a Guiné-Bissau apreendidas pelas autoridades locais debilita qualquer esperança de uma posição destemida quanto ao tráfico de drogas no país

Em março e setembro de 2019, duas apreensões de cocaína – de 789 e 1.860 quilogramas – tiveram lugar na Guiné-Bissau, pondo fim à quase inexistência de apreensões de cocaína significativas na África Ocidental desde 2013. As apreensões pareciam indicar que as autoridades da Guiné-Bissau estavam a adotar uma posição mais dura em relação ao tráfico de droga.1 E o facto de até terem sido proferidas longas penas de prisão para os condenados (entre 14 e 16 anos para os cabecilhas) foi inédito para os traficantes de cocaína em Bissau e foi citado pela INTERPOL como prova de uma nova vontade política para finalmente combater o tráfico de droga.2

Contudo, em maio de 2021, uma investigação da Polícia Judiciária descobriu que seis dos indivíduos detidos sob acusação de tráfico de droga, na sequência das duas fartas apreensões em 2019, tinham sido discretamente ‘libertados’, alegadamente com a conivência de elementos do aparelho estatal.3 A história de como os traficantes por detrás das maiores cargas de cocaína de sempre da Guiné-Bissau manobraram a sua saída da prisão, embora temporariamente, é outro exemplo da corrupção no seio do sistema de justiça criminal da Guiné-Bissau e realça a forma como as medidas contra o tráfico de droga, brevemente endurecidas, se desgastaram, tendo o foco mudado para considerações políticas.

Guiné-Bissau, localização das apreensões de cocaína em 2019.

Figura 1 Guiné-Bissau, localização das apreensões de cocaína em 2019.

Crime sem castigo?

Em março de 2019, as autoridades apreenderam 789 quilos de cocaína no fundo falso de um camião que transportava peixe de Bissau para o Mali. A operação, denominada Carapau, resultou na condenação de três indivíduos, cada um dos quais sujeito a sentenças severas.4 Pouco tempo depois, a Operação Navara levou à apreensão, em setembro, de 1.869 quilos de cocaína – a maior da história do país – e à condenação de 12 indivíduos em 31 de março de 2020. As condenações e as longas penas quebraram a tradição em Bissau, onde a impunidade é generalizada.

O Tribunal Regional da Guiné-Bissau condenou Braima Seidi Bá pelo seu envolvimento num transbordo de cocaína a 16 anos de prisão, uma pena mais tarde comutada pelo Tribunal de Recurso para 6 anos.

O Tribunal Regional da Guiné-Bissau condenou Braima Seidi Bá pelo seu envolvimento num transbordo de cocaína a 16 anos de prisão, uma pena mais tarde comutada pelo Tribunal de Recurso para 6 anos.

Fotografia fornecida

Porém, é de notar que os cabecilhas da rede responsável pelo carregamento de drogas de Setembro – Braima Seidi Bá e Ricardo Monje – cada um condenado a 16 anos, nunca foram detidos. Bá, que se crê estar entre os mais notáveis traficantes de droga do país, e presumido cérebro por trás da importação de Março de 2019, terá escapado à prisão graças à proteção de elementos do aparelho estatal bissau-guineense.5 Um empresário guineense, que viaja regularmente para a Gâmbia, relatou que, em meados de 2021, Bá residia num hotel que possui na Senegâmbia, uma zona turística a meia hora de Banjul, a capital da Gâmbia.6 Este empresário afirmou que Bá é amiúde visto na receção do hotel e em vários restaurantes da zona, indicando que acredita que a sua detenção, que exigiria coordenação entre as autoridades guineenses e gambianas, é extremamente improvável.7

Este sentimento de impunidade foi reforçado em Outubro de 2020, quando as sentenças das pessoas que estavam por detrás da carga de droga de Setembro de 2019 foram drasticamente reduzidas num acórdão proferido pelo Tribunal de Recurso.8 (A pena de Bá, por exemplo, foi reduzida de 16 para seis anos).9 A antiga ministra da Justiça, Ruth Monteiro, descreveu o veredito como uma “absolvição camuflada”,10 enquanto fontes locais suspeitam que a deliberação foi motivada pelo pagamento de subornos aos juízes que proferiram a sentença maioritária (o juiz Aimadu Sauané emitiu um voto vencido, visto como uma posição de coragem contra a maioria).11 Abílio Có, presidente do Observatório Guineense da Droga e da Toxicodependência, uma organização da sociedade civil que procura coligir dados sobre o consumo de droga na Guiné-Bissau, criticou a decisão da magistratura por “reduzir as penas” e afirmou que as investigações bem sucedidas conduzidas pela Polícia Judiciária estavam a ser comprometidas pela corrupção na magistratura.12

Atestado médico

Indícios mais preocupantes surgiram em 12 de Maio de 2021, quando a Polícia Judiciária recebeu a informação de que alguns dos reclusos condenados na sequência das operações Carapau e Navara tinham saído da prisão de Bandim. No dia seguinte, foi confirmado que dois dos condenados como resultado da Operação Carapau (Sidi Ahmed Mohamed e El Adji Marguei) e quatro condenados pela Operação Navara (Jonh Fredy Valencia Duque, Avito Domingos Vaz, Saido António Seidi Bá e Mussa Seidi Bá, sendo os dois últimos parentes do cabecilha, Braima Seidi Bá) tinham sido saído por razões médicas.13 Enquanto a maioria dos presos foi libertada em Abril e Maio de 2021, um indivíduo, Saido António Seidi Bá, tinha sido saído no primeiro trimestre de 2020.14

Suspeitando de delitos, a 13 de Maio a Polícia Judiciária localizou e de prendeu novamente os reclusos libertados, à exceção de um que não foi encontrado. Em declarações prestadas à Polícia Judiciária por cada um deles, terão invocado uma série de condições médicas que exigiam tratamento médico urgente e estadias indefinidas fora da prisão. Os reclusos alegaram terem sido escoltados para o exterior por guardas prisionais, tendo alguns afirmado que mantiveram contato com o chefe da prisão durante todo o seu tempo no exterior do estabelecimento.

O chefe da guarda prisional confirmou ter tomado conhecimento da saída de cada recluso e alegou que tinham sido seguidos os procedimentos adequados, incluindo a autorização judicial para o tratamento médico dos presos.15 Dois médicos ao serviço de dois hospitais nos quais os presos terão recebido tratamento confirmaram as condições de saúde de cada um dos reclusos. Os agentes da autoridade contaram que o vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça tinha autorizado a saída temporária dos presos.16

No entanto, investigações subsequentes da Polícia Judiciária constataram que os relatos dos reclusos, pessoal penitenciário e os médicos eram falsos e que as enfermidades tinham sido fabricadas. Foi também descoberto que os envolvidos tinham tomado medidas consideráveis para cobrir os seus rastos, incluindo a utilização de um bisturi para criar uma cicatriz num dos reclusos, para simular a cirurgia a que, alegadamente, se tinha submetido. A 24 de maio de 2021, o Juiz de Instrução Criminal autorizou a detenção preventiva funcionários prisionais subalternos e médicos que se crê terem conspirado na saída dos reclusos,17 mas, até agosto de 2021, funcionários e médicos continuavam em liberdade enquanto aguardavam julgamento, para o qual ainda não foi estipulada data.18

Um regresso à impunidade geral para os traficantes de droga?

A Guiné-Bissau funciona há muito tempo como uma plataforma de instabilidade na região, servindo de porto seguro para os protagonistas dos mercados ilícitos, bem como de importante ponto de entrada para a cocaína proveniente da América do Sul.19 As circunstâncias em torno da saída dos condenados por tráfico de drogas evidenciam como a corrupção nas infraestruturas da justiça penal na Guiné-Bissau compromete o trabalho de interveniente da Polícia Judiciária e do sistema judicial.

A investigação da Polícia Judiciária sobre a saída de prisioneiros por alegados motivos médicos indica um nível de concentração sistemática no crime organizado, pelo menos por certos elementos do organismo. Isto é especialmente digno de nota dada a crescente politização da Polícia Judiciária sob a presidência do Presidente Umaro Sissoco Embaló, que chegou ao poder no início de 2020 e cujo foco está, aparentemente, no enfraquecimento da oposição política em vez de investigar o tráfico de drogas.20 De acordo com fontes da Polícia Judiciária entrevistadas pelo portal Bissau Digital em fevereiro de 2021, aquela força policial não realiza qualquer investigação relativa a tráfico de drogas desde o início de 2020 e o crime organizado já não é uma prioridade estratégica.21 Organizações da sociedade civil da Guiné-Bissau, incluindo a Liga Guineense dos Direitos Humanos, e meios de comunicação social manifestaram preocupação perante a utilização crescente da Polícia Judiciária para fins políticos em vez de fins de justiça criminal.22 A aparente falta de investimento do estado guineense na resposta ao tráfico de drogas pode ser um dos fatores na origem da indicação do General António Indjai – líder do golpe de estado de 2012 e alvo de anteriores investigações da DEA norte-americana, devido ao seu envolvimento no tráfico de drogas – como um novo alvo no âmbito do Programa de Recompensas para Narcóticos do governo dos EUA. Esta indicação, que oferece uma recompensa de 5 milhões de dólares por informações que levem à detenção de Indjai, que está nas listas de sanções dos EUA, ONU e UE desde 2012, constitui uma medida unilateral dos EUA destinada a atingir protagonistas do mercado de drogas bissau-guineense.23

Estes episódios indicam que as apreensões e sentenças proferidas em 2019-2020 não assinalaram o início de uma resposta fortalecida ao tráfico de drogas, mas, antes, um breve período de independência nas investigações da Polícia Judiciária. Não se registaram grandes apreensões desde então – dificilmente sendo, por si só, sinal de diminuição dos fluxos através do país, mas mais um regresso à impunidade geral para os traficantes de droga.

Notas

  1. Sidi Ahmed Mohamed, cabecilha da apreensão de março, foi condenado por tráfico de droga em novembro de 2019, juntamente com dois cúmplices. Mohamed foi condenado a 15 anos de prisão e os seus cúmplices a 14. UNODC, Guiné-Bissau: Drug smugglers receive record 16-year-jail sentences as justice system strengthened by UNODC, 10 de abril de 2020, https://www.unodc.org/westandcentralafrica/en/2020-04-02-jugement-navara-guinee-bissau.html

  2. Ver, por exemplo, INTERPOL, Guinea-Bissau: Triple prison conviction marks new era of anti-drug action with INTERPOL, 27 de dezembro de 2019, https://www.interpol.int/en/News-and-Events/News/2019/Guinea-Bissau-triple-prison-conviction-marks-new-era-of-anti-drug-action-with-INTERPOL; UNODC, Guinea-Bissau: Drug smugglers receive record 16-year-jail sentences as justice system strengthened por UNODC, 10 de abril de 2020, https://www.unodc.org/westandcentralafrica/en/2020-04-02-jugement-navara-guinee-bissau.html

  3. As informações relativas a esta investigação foram partilhadas com a GI-TOC por meio de relatórios de casos, juntamente com uma série de entrevistas com juristas e agentes da autoridade em Bissau entre maio e julho de 2021. 

  4. UNODC, Bissau-Guinean authorities achieve largest ever drug seizure in the history of Guinea-Bissau, https://www.unodc.org/westandcentralafrica/en/2019-03-15-seizure-guinea-bissau.html

  5. Por exemplo, durante uma breve estadia em Bissau, em março de 2020, enquanto decorria o julgamento, Bá era visto em público, claramente sem medo de ser preso. Bá ficou hospedado em casa de Danielson Francisco Gomes, diretor da Petroguin, uma grande empresa pública. Mark Shaw and A Gomes, Breaking the vicious cycle: Cocaine politics in Guinea- Bissau, maio 2020, Global Initiative Against Transnational Organized Crime, https://globalinitiative.net/wp-content/uploads/2020/05/Guinea-Bissau_Policy-Brief_Final2.pdf

  6. Entrevista, Bissau, maio de 2021. Tal foi corroborado, por duas outras fontes baseadas em Bissau com bons conhecimentos dos movimentos de Seidi Bá, em entrevistas, Bissau, junho de 2021. 

  7. Embora houvesse relatos de investigações em curso no final de 2020, estas não se materializaram até à atualidade. 

  8. The Seidi Bá cocaine trial: A smokescreen for impunity?, Global Initiative Against Transnational Organized Crime, 20 de janeiro de 2021, https://globalinitiative.net/wp-content/uploads/2021/01/Guinea-Bissau-RB1.pdf

  9. Ibid. 

  10.  Entrevista com Ruth Monteiro, antiga ministra da Justiça da Guiné-Bissau, dezembro de 2020. 

  11.  The Seidi Bá cocaine trial: A smokescreen for impunity?, Global Initiative Against Transnational Organized Crime, January 2021, https://globalinitiative.net/wp-content/uploads/2021/01/Guinea-Bissau-RB1.pdf

  12.  Entrevista com Abílio Có, presidente do Observatório da Droga e da Toxicodependência, Bissau, dezembro de 2020. 

  13.  De notar que, entre os que saíram, encontravam-se familiares de Braima Seidi Bá. 

  14.  A sequência de acontecimentos após a saída dos presos delineada nesta seção baseia-se em entrevistas com juristas e agentes da autoridade em Bissau, entre maio e julho de 2021, e análise de relatórios de casos. 

  15.  Estas declarações foram amplamente corroboradas por dois outros funcionários na prisão de Bandim. 

  16.  Entrevistas com agentes da autoridade, Bissau, junho de 2021. 

  17.  Tribunal Regional de Bissau-Vara Crime, Juízo de Instrução Criminal, Processo No 465/2021. 

  18.  Entrevista com membros da magistratura e da polícia, Bissau, 28 de julho de 2021. 

  19.  Por exemplo, Banta Keïta, um residente de Dakar que detém um passaporte francês e que se crê ser uma figura-chave por detrás da apreensão de três toneladas em Banjul em janeiro de 2021, terá fugido para a Guiné-Bissau, suspeito de estar sob a proteção dos militares. Drug Law Enforcement Agency, Gâmbia, Ministério do Interior, Information note on the seizure of 2ton, 952kg, 850g of cocaine, 8 de janeiro de 2021; Ditadura do Consenso, Cocaína-3 Toneladas Apreendidas na Gâmbia, 18 de janeiro de 2021, http://ditaduraeconsenso.blogspot.com/2021/01/cocaina-3-toneladas-apreendidas-na.html; Atlanticactu, Gambie: Saisie de 3 toneladas de cocaïne, un enquêteur de la DLEAG écarté pour avoir interpellé un proche d’un chef d’état, 3 de janeiro de 2021, https://atlanticactu.com/gambie-saisie-de-3-tonnes-de-cocaine-un-enqueteur-de-la-dleag-ecarte-pour-avoir-interpelle-un-proche-dun-chef-detat/. Entrevista telefónica com uma fonte na Guiné-Bissau, 20 de janeiro de 2021. Este é um dos vários exemplos; uma ilustração adicional do papel da Guiné-Bissau como “porto seguro” é que um dos três homens senegaleses identificados pela polícia local como estando por detrás da importação de 4 kg de cocaína apreendida em Dacar fugiu para a Guiné-Bissau para evitar ser preso. Conselho de Segurança das Nações Unidas, relatório do Secretário-Geral sobre as atividades do Gabinete Regional da ONU para a África Ocidental e o Sahel, 24 de dezembro de 2020, https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/resources/S_2020_1293_e.pdf. Benjamin Roger, “Dakar cocaine seizure shows West African ports are easy transit hubs”, The Africa report, 17 de outubro de 2019, https://www.theafricareport.com/18839/dakar-cocaine-seizure-shows-west-african-ports-are-easy-transit-hubs/

  20. O encerramento legalmente duvidoso da Agência de Regulação do Petróleo pela Polícia Judiciária, a mando do presidente, e é invocado pela Liga Guineense dos Direitos Humanos como prova da politização da PJ. Entrevista, Bissau, 2 de fevereiro de 2021. Sobre o tráfico de droga, o presidente é citado como tendo dito repetidamente à Polícia Judiciária que o tráfico de droga não é uma prioridade. Em vez disso, é dito que ordenou à Polícia Judiciária que se concentrasse na oposição e dissidência políticas. Entrevistas, Bissau, janeiro de 2021-julho de 2021. 

  21. JP guineense à beira da explosão, Bissau Digital, 25 de fevereiro de 2021. 

  22. Declaração pública feita pela Liga Guineense dos Direitos Humanos, 23 de janeiro de 2021, http://www.lgdh.org

  23. Departamento de Estado dos EUA, Antonio Indjai – New Target, 19 de agosto de 2021, https://www.state.gov/antonio-indjai-new-target/